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quarta-feira, 19 de junho de 2013

Sou mamífera! Não sou mãezinha!*

A família leonina é mamífera. O filhote mama exclusivamente por um tempo, depois aprende a comer da caça que sua mãe traz para posteriormente aprender com ela, a mãe, a arte de caçar. Por incrível que pareça, não é o leão, o tão falado rei da selva, quem comanda a família. É a leoa, dizem.

Eu não gosto de falar em comando, chefe de família. São conceitos mais que ultrapassados para mim. São antigos, retrógrados mesmo e preconceituosos, porque pressupõem um chefe e um subordinado.

A família leonina vive bem em parceria. O leão protege sua parceira e filhotes de predadores. Na ausência da leoa, caçam. A leoa caça e ensina seus filhotes as artes da sobrevivência. Quando a leoa sai para caçar ela deixa seus filhotes sob a proteção do leão, seu parceiro, e /ou de leoas que compõem o bando. A comunidade e a família sabem e entendem que aquela ausência da leoa é bem vinda e necessária para a espécie, e quem sabe até para ela mesma, a leoa. A leoa sabe que ao sair, o leão, ou as demais leoas olharão seus filhotes.

Os pinguins não são mamíferos, mas eles, os papais e mamães pinguins, formam um casal monogâmico e se revesam nos cuidados com o filhote e a busca de alimentos. Ainda que a presença da mãe não seja tão imprescindível neste caso, uma vez que o filhote não é amamentado e se alimenta da mesma comida dos pais previamente mastigada por eles, é interessante perceber como não há supremacia nas relações familiares e laborais. O que os difere é sua condição biológica apenas. A fêmea põe o ovo.

E as baleias jubarte? Seus filhotes são paridos, elas os amamentam exclusivamente por longos meses, depois ensinam seus filhotes a rota da migração e a caçar o krill para sobrevivência. São mamíferas e agem para a sobrevivência dos filhotes. 

Os golfinhos? Mesma coisa.

Em muitas sociedades antigas as mulheres também atuavam tanto nos cuidados com os filhos, como na agricultura, caça, elaboração de utensílios, ensino. Eram conselheiras, curandeiras, parteiras. Agricultoras. Caçadoras. Eram mães. Há relatos inclusive de mulheres guerreiras. Não havia culpa em suas relações com as crias e com as demais famílias. Não havia culpa em deixar os filhos para garantir o sustento, a sobrevivência, o conforto e a segurança do clã.

Esse é o ponto: precisamos nos sentir culpadas porque termos outras funções e atividades além de cuidar dos filhos? Quais são nossas responsabilidades biológicas, naturais, como fêmeas, mulheres que somos, diante de um filho e quais são aquelas que nos impuseram os anos, os homens, as culturas e religiões patriarcais em que fomos sendo inseridas?

A quem interessa que a mulher seja dependente economicamente de alguém? A quem interessa o fato de outras tantas terem que retornar ao trabalho muito antes do tempo devido sem uma retaguarda, do marido, do restante da família ou da sociedade em geral, para garantir o cuidado com seus filhotes em sua ausência?

Quem gosta de estudar história e comportamento sabe que esse papel de rainha do lar e única responsável pelo cuidado com os filhos e a casa é patriarcal e machista. Essa imagem nos é amplamente divulgada desde que nascemos e somos introduzidas no mundo do cor de rosa, das linhas e agulhas, dos bebês de brinquedo, das cozinhas, panelinhas, lavanderias, vassouras e maquiagens. Da mãezinha, mulherzinha, infantilizada, tutelada.

Ouvimos o tempo todo que a mãe é a responsável, a culpada, o anjo e o demônio da vida do filho. Aprendemos que é ela, a  mãe, quem deve estar com a criança. Ela é quem deve ser a responsável pela casa, pela roupa, pelo alimento. Deve estar sempre presente.

Claro que eu não posso afirmar que este não seja o desejo e vontade de muitas. Conheço muitos casos de mulheres que estão felizes, ao menos nos primeiros 2 ou 3 anos do nascimento dos filhos, estando exclusivamente em casa cuidando deles e do lar. Foi uma escolha, consciente. E claro, há alguém para bancar esta escolha. Certo?

Agora, se não posso afirmar que mulheres não são felizes estando única e exclusivamente em casa, cuidando de seus lares, maridos e filhos, vivendo uma parceria com estes maridos, namorados e afins onde ela, a mulher, labora em casa sem remuneração, também não posso concordar que a outra parcela de mulheres está renegando seu papel e função na sociedade quando escolhe buscar realização e sustento fora do lar. Mesmo quando tem filhos. Ou ainda, principalmente por causa deles.

E neste ponto, da mulher fora do lar seja por escolha, seja por necessidade foi que eu me vi da noite para dia, após o nascimento da Ísis, renegando tudo aquilo de que me orgulhava, todas as minhas certezas sobre quem eu era e o que eu queria para mim mesma.

Eu não sou do lar. Eu não sou feliz me dedicando exclusivamente à casa, ao marido, aos filhos.

Eu preciso, eu quero, eu gosto de exercer uma atividade remunerada; MAS eu sei que os filhos PRECISAM de cuidado e nos primeiros meses de vida precisam da mãe, que é sua fonte de alimento e proteção. É biológico, é dos mamíferos, é das fêmeas.

O meu desejo esbarra na maneira como a nossa sociedade capitalista e patriarcal está organizada. Não tenho dúvidas de que sou necessária junto aos filhos muito mais que meu marido. Nos primeiros meses de vida sou monopolizada pelo bebê. Mas e depois? Quando meu leite já não é a fonte principal de sobrevivência, quando meu filhote já se alimenta com outras fontes, aprende a engatinhar, andar, correr? Não deveria haver uma divisão das tarefas domésticas e de cuidado com os filhotes com o marido, por exemplo? Por que não há?

Quem conhece homens que estejam lutando pelo aumento do tempo da licença paternidade? Da flexibilização do horário de trabalho, pedindo redução de carga horária para cuidar melhor da família? Sair mais cedo para levar filho ao médico? Discutindo em blogs, fóruns e afins sobre o papel deles na família?

Eu não conheço nenhum. O que não quer dizer que eles não existam, eu sei que existem, mas normalmente essas discussões são promovidas por mulheres, inclusive no que diz respeito a eles.

E então, nós mulheres que desejamos ter uma fonte de remuneração, que consideramos imprescindível para nós mesmas e nossos filhos sermos independentes da tutela do marido nos encontramos numa sinuca de bico, promovida muitas vezes por nossas colegas de matriarcado: trabalho ou fico em casa? Trabalho fora = abandono, terceirização do filho, negligência. Mas isso só quando somos nós, as mulheres, quem trabalhamos. Não há culpa paterna difundida por aí devido ao fato deles, os homens, trabalharem. Não há venda de papinha, nem de brinquedos, nem de apetrechos mirabolantes para apaziguar a tal da culpa. Ao contrário: o trabalho e sucesso profissional do homem é altamente valorizado e difundido.

E daí? Daí que eu não concordo. Entendo que a mulher tem um papel biológico importantíssimo na criação dos filhos, mas não assumo como verdade que a mulher seja a mais a importante na casa e na vida do filho, salvo aqueles períodos em que nossa condição de fêmea nos diferencia do macho: gestar, parir, amamentar, acolher.

Ah...mais uma feminista...Sim, uma feminista que luta pela valorização do papel da mulher, não como sendo igual ao homem, mas justamente por nossas diferenças em relação a eles. Luto pela valorização da segurança da mulher e dos filhos na gestação, parturição, amamentação. Que não tenhamos nosso direito a vivenciar esses papéis tão importantes para nós porque devemos nos igualar aos homens para sermos respeitadas.

Eu luto pela igualdade na divisão dos cuidados com os filhos, que a responsabilidade não recaia somente sobre a mãe. Os pais também são importantíssimos e eles deveriam ter o direito, senão o dever, de passar mais tempo em casa vivenciando os cuidados com a família. Não como coadjuvantes, mas como co-responsáveis que são.

Que nós, mães, não nos ataquemos e nos dividamos em times de "do lar" e "trabalhadora", mas que lutemos juntas tanto pela valorização da maternidade quanto para que nos seja dado condições reais de nos sustentarmos através de nosso próprio trabalho remunerado sem culpa, sem a rotulação de negligência e abandono da família. Para mim esses conceitos só servem para manter a nós, mulheres, na condição de subempregadas, mal remuneradas, mesmo quando ocupando o mesmo cargo do homem. Só servem para nos manter sob a tutela patriarcal da sociedade.

Antes de acusar outra mulher e mãe e reivindicar dela algo que ela não poderia nem deveria dar, como a liberdade de ser a responsável pelo seu próprio sustento e de sua família, em parceria ou não, devemos antes cobrar daqueles que podem e devem proteger nossas família através da elaboração e cumprimento de leis e formas de organização laboral que nos permita sermos protagonistas em nossas maternidades e em nosso sustento.

Para exercer uma maternidade consciente, ativa, real não há necessidade de se estar em casa, no lar, atrelada aos trabalhos domésticos e aos filhos somente. Nenhuma mamífera faz isso na natureza, pois depender 100% de outro mamífero para sobreviver é uma situação rara.  E por pouco tempo. Fêmeas jovens e saudáveis exercem seu papel biológico sim, gestam, parem, amamentam e cuidam de seus filhotes. Mas não sozinhas. E principalmente, não com culpa.

*Texto originalmente publicado no MMqD

ATUALIZANDO: A Natalie, super fofa, escreveu um texto ótimo em que ela conseguiu esclarecer alguns pontos que eu penso não terem ficado muito claros no meu. Corre !


Como ela consegue? Ela é uma ficção. 





Um comentário:

  1. Puxa, Nine, onde eu assino? Você escreveu o post que eu venho querendo escrever há tanto tempo... E disse tudo de um jeito bem melhor e mais claro que eu jamais diria.
    Dá uma olhada no vídeo da Laura Uplinger que eu postei no blog. Ela fala mais ou menos disso também. E há tempos que eu digo que igualdade não significa nos igualarmos em tudo.
    Acho --como feminista que sou-- que a "revolução feminista" está muito inacabada, muito incipiente. Só conseguimos avançar naquilo que foi e é interessante pro capitalismo, pro mercado de trabalho, pro próprio patriarcado ocidental. Falta,como você disse, não precisarmos imitar os homens pra sermos respeitadas. Falta os homens poderem assumir e estimular o feminino neles, com orgulho. Falta o feminino ser valorizado de fato, falta termos condições para sermos mães e pais conscientes e presentes e, ao mesmo tempo, podermos nos sustentar e exercer outros papeis sociais em igualdade de condições, mas sem precisarmos mimetizar nenhum grupo pra ser aceitas.
    Vou recomendar esse seu texto no blog!

    bjos

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